(traduzido, adaptado e resumido para portugal correcto a partir de um original de Federico García Lorca, Teoría y juego del duende)
Desde o ano de 1994, em que comecei a percorrer, pela noite, as ruas do Bairro Alto e Santa Catarina, depois, as do Castelo, Alfama, Mouraria e, mais tarde, Madragoa, até hoje, devo ter ouvido mil razões históricas, filosóficas e literárias para explicar o destino português.
Com a vontade que tinha de descobrir a escuridão e tudo, confesso que todas me entediaram profundamente e nenhuma me satisfez, tal era o grau de erro com que falhavam o alvo do seu objecto.
Eu não queria deixar-me levar por uma história fácil e tombar na modorrenta desistência que enferma os entediados.
Propus-me a encontrar, de forma sensível e empenhada, e descrevê-lo o melhor que soubesse, o espírito oculto do fatídico Portugal
O mesmo de quem Camões perguntava “com que voz cantarei meu triste fado” ou do qual Bocage sentenciou “que eu fosse enfim desgraçado, escreveu do fado a mão”.
E também José Régio disse “o Fado nasceu um dia, quando o vento mal bulia e o céu o mar prolongava, na amurada dum veleiro, no peito dum marinheiro que, estando triste, cantava”.
Estes tons negros são o mistério, as raízes que se cravam no limo que todos conhecemos, que todos ignoramos, mas de onde nos chega o que é substancial na arte. Sons negros, diz o homem popular de Portugal e concorda com Goethe, que encontra a definição do fado ao falar de Paganini, dizendo ‘Poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica’.
Assim, pois, o fado é um poder e não um fazer, é um lutar e não um pensar. Ouvi dizer a um velho mestre guitarrista: “o fado está na garganta; o fado sobe por dentro desde a palma dos pés”. Ou seja, não é uma questão de faculdade, mas de verdadeiro estilo vivo; ou seja, de sangue; ou seja, de velhíssima cultura, de criação em acto.
Deixemos anjos, musa e duende. Essas são quimeras de povos que nunca conheceram o mar como nós, nem o céu, nem a aventura de descobrir. E de falhar. E de tentar de novo.
A verdadeira luta é com fado.
Sabem-se os caminhos para encontrar Deus, desde o modo bárbaro do eremita ao modo subtil do místico. Com uma torre como Santa Teresa ou com três caminhos como São João da Cruz. E ainda que tenhamos que chamar com a voz de Isaías “verdadeiramente tu és Deus escondido”, ao fim e ao cabo Deus manda ao que o busca as primeiras espinhas de fogo.
Podemos mudar de Deus, mas os caminhos são os mesmos. As danças de Rumi, a peregrinação de Ibn Arabi, a fina alegoria de Attar, sempre nos apontam para um caminho para esse algo Deus. Tudo é passagem.
Para encontrar o fado não há mapa, nem exercício. É um abandono. Descobre-se pela entrega, aceita-se pela perdição. Mesmo quando se finge, o fingidor cumpre o seu fado, como Pessoa que se fingiu tudo e outros e místico, mas sempre poeta. Ou como Amália, tomada das ruas para as salas do mundo, mas sempre fadista. Ou aquele empregado de escritório bebedor, que todos os dias se perde nos copos, mas sempre acredita.
Todos sabem que não é possível qualquer emoção sem a chegada do fado.
Sabe-o bem António Franco Alexandre, que dedicou ao fado castelhano um duende livro mas nele escreveu “Tal como és, assim te quero, e sempre/ diverso cada dia do que foste” ou ainda “ainda um dia terás um rosto humano/ que te possa beijar sem ser ferido”.
A chegada do fado pressupõe sempre uma alteração radical de todas as formas sobre velhos planos, de sensações de frescura totalmente inéditas, com uma qualidade de rosa recém-criada, de sortilégio, que chega a produzir um entusiasmo quase religioso.
Todas as artes são capazes de fado, mas onde se encontra mais terreno, como é natural, é na música, na dança, e na poesia declamada, já que estas necessitam de um corpo vivo que interprete, porque são formas que nascem e morrem de modo perpétuo e alçam os seus contornos sobre um presente exacto.
Todas as artes e também os países têm capacidade de fado, como de anjo, de musa ou de duende; e assim como a Alemanha tem, com excepções, a musa; a Itália permanentemente o anjo; e a Espanha é sempre movida pelo duende; Portugal está tomado pelo fado, esse espírito que impele e retrai, esse manso e terrível rodopio inevitável das horas, que impede concertos, planos ou preparação; essa forma de trocar a vontade própria por laudos ao cosmos.
Em todos os países a morte é um fim mas em Portugal há algo pior do que a morte, como diria Mêncio. Em Portugal, antes da morte, e para sempre para além dela, reina a saudade.
Não temos saudades apenas do futuro, como disse o poeta Pessoa, mas chegamos mesmo a ter saudades da morte, saudando-o pelo fado, mesmo sem o sabermos.
Com ideia, com som, com gesto, o fado impregna o ar que respiramos e penetra os nossos poros, em luta com a saudade que temos do futuro, como perdição irremediável do que está por vir. E das feridas desta luta, que nunca cicatrizam, está o insólito, a imaginada parte da obra do homem.
A virtude mágica do poema consiste em devir-se fatal para baptizar com água obscura todos o que o leiam, porque com o fado é mais fácil amar, compreender, e é certo ser-se amado, ser-se compreendido, e esta luta pela expressão e pela compreensão da expressão adquire, às vezes, em poesia as feições da saudade.
O fado... onde está o fado? Pelas tardias ruas vazias corre um vento espiritual que sopra com insistência sobre as cabeças dos que estão mancando quem amam, em busca de novas imagens e expressões: um vento com cheiro a sangue e a ferro, de erva cortada, de lavanda que anuncia o constante desvelar de todas as coisa fadadas.
Não é apenas pelos bairros de Lisboa ou pelas ondulações de Coimbra, todo o Portugal é o porto do fado. Nele não se aporta, mas combate-se. A verdadeira luta é com o fado. E nesta estranha forma de vida, apetece pedir a Lowell a sua frase para português, a única língua possível: “a escuridão, vivida honestamente, é um lugar de deslumbre e vida”. Eis, o fado; eis, pois, por que a verdadeira luta é com o fado.
Publicado originalmente na revista A Sul de Nenhum Norte #1 (2011)